16 de ago. de 2019

Memória emocional pelo caminhar nas agroflorestas da Reforma Agrária no Vale do Paraíba



RELATÓRIO SOBRE A ATIVIDADE REALIZADA NA CAPACITAÇÃO PEDAGÓGICO-PROFISSIONAL EM AGROECOLOGIA (APTA/INCRA-SP) NO PROJETO DE ASSENTAMENTO CONQUISTA, TREMEMBÉ – SP, NO DIA 25 DE JULHO DE 2019, EM TODO PERÍODO NO PROJETO DE ASSENTAMENTO NOVA ESPERANÇA EM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS – SP.
                           José Miguel Garrido Quevedo, Engenheiro Agrônomo, Perito Federal Agrário, Membro do Setor de Meio Ambiente e Recursos Naturais do INCRA - SP
                                 Verônica Andressa de Castro, Estudante de Graduação do curso de Engenharia Agronômica da FCA /UNESP – Botucatu


      1.      APRESENTAÇÃO

A seguir está o relato da atividade conduzido pelo assentado Valdir Martins e pelo agricultor Lucas B. S. Freitas, ambos integrantes da Rede Agroflorestal do Vale do Paraíba, do qual tem como finalidade apresentar o sistema agroflorestal proposto no território de domínio de um assentado agrofloresteiro e uma retrospectiva do presente servidor do INCRA que, em sua trajetória, possuí registrado na memória emocional pelo seu caminhar na Reforma Agrária no estado, momentos relacionados a este Projeto de Assentamento e especificamente a este líder do MST, apresentado na introdução deste relatório.

            2.      INTRODUÇÃO

Foi um tempo áureo no governo do estado, a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo tinha sido criada, passamos por um concurso público, do qual sentimos a solidariedade em nossas veias, torcíamos para ver todo o corpo técnico do ITESP, vinculado a Fundação da UNESP, ser aprovado e integrar a nova Fundação que estava nascendo. Ela foi reestruturada em moldes de uma empresa pública, dos quais divisões foram criadas e havia gerências que atendiam todo espectro das necessidades da Reforma Agrária do estado. As coordenações regionais repartiram o estado em áreas de influência. O agora funcionário público teve a possibilidade de sentir e opinar em que área iria trabalhar.
A equipe formada, a nata distribuída nos cargos de chefia. Era um tempo de trabalho, suor e sonhos realizados. Uma abertura política que colocava “lenha na fogueira” para a Reforma Agrária florescer no âmbito do estado. Um espiral de trabalho crescente, era o que vivíamos.
Um convênio com o INCRA, possibilitou a constituição de uma equipe de avaliadores que elaborariam os laudos de fiscalização e avaliação de processos, dos quais validariam se Fazendas eram aptas para a Reforma Agrária ou não e se alcançaram os índices de produtividade exigidos por Lei. Trabalho de grande envergadura em que regiões do estado foram eleitas como prioritárias. O período de caça as “terras prometidas” estava instalado.
O presente servidor, junto com o grande amigo Benedito Gomes da Silva, compuseram a equipe que perdigou o Vale do Paraíba. Participou como aprendiz do Laudo de Fiscalização que levou a desapropriação do Projeto de Assentamento Nova Esperança em São José dos Campos. Sentiu-se agrônomo de verdade, com o auxílio deste companheiro de luta, o Benedito, a aferir se aquele território ia para os braços do movimento social e virar “Terra Reformada”. As equipes, com isenção, fizeram esta triagem em diversas regiões no estado. Onde se verificava se a propriedade atendia os índices exigidos e servia, ao menos, como estímulo aos produtores vizinhos e mesmo aquele proprietário sob crivo, tornar suas terras produtivas. Era a Constituição Federal sendo aplicada na prática.
Os Cálculos de Capacidade de Uso das Terras, Evolução de Rebanhos, Notas Fiscais de Produção, Registros de Vacinação eram medidos e checados no ano anterior, em que a fazenda estava sob avaliação desde o momento de notificação por parte do Governo Brasileiro.
A fazenda em questão não alcançou os índices mínimos de produtividade exigidos pela carta-mor do Governo Brasileiro. Ganhamos um novo território para compor a “Terra Prometida”. Visualizava projetos para aqueles mares de morros, e planícies de várzea, terras pretas de índio, que volveram a mão do domínio popular.
Desconhecia o trabalho deste militante, o Valdir Martins, que trabalhou na organização das famílias que foram assentadas neste Projeto de Assentamento, pois estavam em um “universo paralelo”. Tempos depois, em outra avaliação, agora em Jacareí, conheceu este líder em Trabalho de Campo. Agora já no Instituto de Colonização e Reforma Agrária, dera um passo na carreira do presente servidor, era agora Federal.
A seguir encontra-se o relato de vida do Perito Federal Agrário José Miguel Garrido Quevedo:
  Nos arredores daquele acampamento, sofri um acidente, onde fui protegido pelo Alto, e tive a solidariedade que atingiu o coração, fui alimentado pelos acampados enquanto aguardava o resgate de meus pares, nada sofri naquele “PT” (perda total). Neste período conheci Valdirzinho, e soltei aquela infeliz frase, que ele ouviu em outras esferas. “Ocê é vagabundo, tem medo da enxada e é adepto aos Sistemas Agroflorestais para poder largar seu lote e seguir militando”. Doce engano. E mais tarde, ganhei a chefia do Serviço de Meio Ambiente e Recursos Naturais da Divisão de Obtenção e Implantação de Assentamentos do INCRA em São Paulo. Me sufocava o trabalho burocrático, desorganizado, fazia meus chefes e subordinados sofrer atrás de demandas e apagar incêndios de processos de meio ambiente pelo Estado. Num momento de alívio, pegava minha equipe, e fugia para o interior, respirar um pouco. Nesta ocasião conheci o trabalho da APTA, os mutirões agroflorestais de implantação de agricultores referência. Retornei ao PA Nova Esperança. Foi tão importante esta vivência para mim, que tenho no mural de fotografias da minha vida profissional, fotos do Antonio de braços abertos feito Jesus, que ao lado de minha mesa de trabalho, me inspira em momentos difíceis. Lá novamente, compartilhei momentos de aprendizado com o Valdirzinho, que se vangloriava por ter conseguido trazer técnicos do INCRA para aquela atividade. Só a nata, a equipe de Meio Ambiente.”

Novo trecho, novos tempos, e este servidor a serviço da Reforma Agrária, com a missão de separar o território dos animais e das plantas da área produtiva, a fim de tornar este ambiente sustentável, seguiu seu caminho.
A oportunidade de realizar uma formação em Sistemas Agroflorestais surgiu. Elaborou-se esta proposta junto a APTA e agora encontraram-se novamente, agora com o mestre Valdirzinho. Que com generosidade nos recebeu, mesa farta de produtos da roça, não parou de transmitir conhecimento, tudo que aprendeu e aprende neste “universo paralelo” que é a Agroecologia, que une corações, que une ideais, que une sonhos. 
Pequeno viveiro de produção de mudas nativas e exóticas para uso na agrofloresta.

Aprendeu com o Professor a plantar diversas hortaliças, tudo junto, respeitando seu gosto pela altura, numa união, em que uma planta cria a outra. O plantio de árvores frutíferas e madeireiras, um planejamento agrícola de seu território onde claramente estabeleceu suas metas. Terra de Olerícolas, num primeiro momento, Terra de Frutíferas num segundo, terra de Herança para os filhos empreenderem quando daqui a pouco seu pai vai ganhar o mundo, ensinando o que sabe aos seus pares e como não, a todos que vêm em busca de saber. Já pensa em seus netos, manejando árvores que serão ceifadas daqui a 25 anos. “Como pude pensar tanta bobagem, como dá trabalho manejar um facão, além do esforço físico há o mental.”, reformo minha opinião sobre o mestre Valdirzinho.

               3.      APRESENTAÇÃO DO SAF

Depois do café reforçado, o início dos trabalhos. Um papo teórico, em que o Professor transmitia vida, dominando os termos técnicos e o espírito dos Sistemas Agroflorestais, fazendo-nos compreender conceitos e princípios até então nebulosos, para nós iniciantes.
Não basta apenas entender o gosto pela altura de cada planta, deve-se compreender a função do tempo no amadurecimento de seu SAF. “Primeiro sai o rabanete e a rúcula, aí a alface tem como engordar. Enquanto são criados pela couve, a espera de ser colhida”. A importância da serapilheira, manto sagrado, que protege o solo, permite que o solo sempre úmido seja o berço confortável para os bebezinhos, as mudinhas das hortaliças. A importância da adubação com farinhas de rocha e esterco, a correção da acidez com calcário. O espaçamento adequado para cada vegetal desenvolver: a alface necessita de 30 centímetros entre plantas seus pares, a rúcula 15 centímetros, o alho porró 15 centímetros, a couve chinesa “shingensai” 20 centímetros, a mandioca 1 metro e o tomate 1 metro. Este é o mosaico a nós apresentado, o consórcio das olerícolas a ser implantado.
Valdir e Lucas ensinam a implantação de horticultura sintrópica.

Espécies hortícolas que serão plantadas em associação e o respectivo espaçamento.
Esclarecido que são todas juntas. Cada planta tem respeitado a distância a seu par, não importando se está ao lado, em menor espaço, com a “companheira”, uma alusão ao tratamento dado aos companheiros de luta pela “Terra Prometida”. Compreendido o conceito fundamental nos Sistemas Agroflorestais com Hortas Sucessionais. São três canteiros que formam o módulo produtivo deste Sistema Agroflorestal. Selando cada módulo, uma linha de plantio de árvores frutíferas, entre elas a bananeira, e madeireiras, uma de cada lado, como linhas de diversidade que tem no feijão guandú, a adubadeira, como cultura de preenchimento dentro desta linha de diversidade.


Com o entendimento nivelado, fomos conhecer o lote do Valdirzinho. Terra preta de índio, como é tratada a várzea de inundação ou planície de inundação, como é o caso. Associadas ao mar de morros, a eles acopladas. Um lote que apresenta todos os tipos de relevo existente nesta grande propriedade desapropriada.
Subindo morro à cima, caminhando entre uma floresta em formação, encontra-se diversidade de plantas, fustes eretos, diâmetros a altura no peito generosos. Plantas saudáveis em franco desenvolvimento. Uma área cultivada com bananas, onde foi nos apresentado o capim Guatemala, vistoso, de fácil manejo e grande fornecedor de cobertura para o sistema. O manto sagrado, que permite vida, que guarda a umidade, é a pele daquele sistema.
Chegando a uma pastagem com braquiária, há o capim Guatemala que foi semeado e espera crescer, inibindo o desenvolvimento da braquiária por sombreamento e num futuro próximo vir a substituí-la. Em uma parte do percurso, o morro ficou íngreme. Tal trecho pertence à região de fronteira agrícola, em comparação aos rincões inexplorados deste país a fora. Um bravo colaborador retira do sistema a planta pioneira de colonização daqueles solos, a braquiária, há cinco dias de trabalho árduo.  A braquiária foi roçada antes e o trabalho se restringe a retirar as raízes da gramínea com a enxada já que o colo da planta possui as gemas que apresentam crescimento vigoroso. A grade niveladora Home completará o serviço, respeitando os limites do relevo, de preparar de solo a espera de implantação de novos sistemas agroflorestais.
Borda de SAF regenerativo de mata ciliar.
Fascinado, o percurso orientado pelo seu filho de quatorze anos, que maneja as palavras técnicas fincadas no conhecimento prático. Descendo o morro, há um sistema agroflorestal com o eucalipto, árvore madeireira fornecedora de massa verde, lignina e celulose para os sistemas. Trata-se da planta que fornece palanques e mourões para a propriedade. Uma aula de manejo de corte pelo filho do mestre. O corte do ponteiro, em que a gema apical da árvore é cortada a pelo menos quatro metros de altura, que se tem acesso por escada. Ocorre a explosão de brotos, onde poucos são escolhidos, a maioria são ceifados, em operação futura. A árvore recebe o estímulo de engordar, alcança diâmetros a altura do peito, compatíveis com seu uso, madeiras estruturais para o Sítio Ecológico.
Área de nascente em recuperação - capim guatemala é a principal gramínea nesse SAF regenerativo.

Fronteira entre braquiária e área agrícola com linhas de SAF com banana, guandu, frutíferas e arbóreas diversas, incluindo eucalipto manejado para madeira.
Uma parada para água refrescante e iniciou-se a etapa de fertilizar os canteiros, cobri-los com o manto sagrado, no caso, restos de podas de árvores da cidade cortadas em pequenos pedaços, e elaboração do designer vivo das mudas a ser plantas, discutido anteriormente. As mudas são colocadas sobre os canteiros, conforme desenho estabelecido anteriormente.
Adubação dos canteiros com termofosfato, farelos e composto de madeira da poda urbanana.

Canteiro da esquerda adubados e com cobertura morda de poda de árvores, e canteiros centrral e da direita ainda descoberto, só com adubação.


Irrigação para o plantio de mudas de hortaliças.

Agricultor ecológico Valdir Martins instrui graduanda de Agronomia para o plantio de hortaliças na agricultura sintrópica.

Plantio de hortaliças em consórcio, conforme planejamento da agricultura sintrópica.

Detalhe do sistema de plantio de maniva de mandioca e maravalha da poda de árvores como cobertura morta.

Detalhe das espécies distribuídas no canteiro.
Horta sintrópica com consórcio de hortaliças cujo planejamento segue o arranjo sucessional: maior estabilidade ecológica e impacto reduzido ao solo.

Detalhe de um módulo já formado, em que as alfaces estão na época de colheita dando lugar às brásicas e ao tomate.
Os mutirões agroflorestais, momento sagrado na nossa formação, é o momento onde ocorre o nivelamento e troca de conhecimento entre os participantes, cada um contribui com o conhecimento que traz de sua caminhada pela Vida: estudantes com pouca lida na terra, mulheres que enfrentam, às vezes pela primeira vez, a labuta na terra, crianças que se encantam com a possibilidade do dedinho plantar um serzinho a espera de florescer, Experientes mãos que demonstram a que vieram. Todo mundo aprende e ensina um pouco. É a sensação de nos unir à natureza. Saindo da discussão mental e pelo esforço físico, alcançando o preenchimento por Deus. Vencer a meta estabelecida de quantos metros de canteiro preparar, manejar ferramentas, vencer o cansaço, se desarmar e conversar entre seus pares com o coração aberto. É momento único nesta Escola da Vida, que esta forma de trabalho coletivo nos proporciona.

Construção permacultura da escola de agroflorestas e Agroecologia do Sítio Ecológico
 Fome alcançou limites indesejáveis na taxa de glicemia entre um dos participantes, é hora do banquete, que, graciosamente, a filha do Valdirzinho, proporcionou. Comida caipira, vinda da roça. Fruto do trabalho humano que alimenta o corpo e a alma. Um frango assado inesperado se uniu no almoço colaborativo. O banquete estava completo e saciou a fome dos alunos-aprendizes. Gratidão à família deste agricultor que com simplicidade e amor vem se tornando em uma Escola do Saber Agroecológico, a agricultura que respeita a vida e a Deus.
É fim de feira, o anoitecer vem chegando, os participantes se reuniram a beira da construção em adobe da estrutura da Escola da Vida do Valdirzinho à espera de mais um mutirão. De mãos dadas agradeceram ao Criador pelas horas de labuta, aprendizado, troca de olhares e o sentimento que vale apena ser agricultor e manejar a mãe Terra com sabedoria, sem veneno. Sentindo no peito que o dia tinha sido ganho, se despediram de mais um módulo do curso de formação em agroecologia e subiram mais um degrauzinho do Saber.

 Diversidade de espécies alimentícias: 
Banana figo.

Banana prata.

Citrus.

Tomate.

Alface crescpa com brássica.

Ervilha em rotação com tomate.

Salsinha com brássica.

Adaptação para blog - Antonio C. Pries devide - pesquisador da APTA Polo regional Vale do Paraíba
Imagens: Rodrigo Dametto, Anna Cláudia Leite e Paulinho do Assentamento Conquista, Tremembé/SP. 


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