26 de ago. de 2019

Sistemas agroflorestais e construção alternativa na APA Mantiqueira - A dimensão material é um lugar de encontro entre amigos


RELATÓRIO DA CAPACITAÇÃO PEDAGÓGICO-PROFISSIONAL EM AGROECOLOGIA (APTA/INCRA-SP): SÍTIO DO BUGIO, RIBEIRÃO GRANDE, PINDAMONHANGABA-SP
                           José Miguel Garrido Quevedo, Engenheiro Agrônomo, Perito Federal Agrário, Membro do Setor de Meio Ambiente e Recursos Naturais do INCRA - SP
                                 Verônica Andressa de Castro, Estudante de Graduação do curso de Engenharia Agronômica da FCA /UNESP – Botucatu

O módulo apresentado no presente relatório foi a “cereja-do-bolo” da Capacitação Pedagógico-Profissional em Agroecologia (APTA/INCRA-SP). Os participantes iniciaram seu encontro com a tradicional roda de mãos dadas. O mestre, Antônio Carlos Pries Devide, explanou sobre sua conexão com a região e sua propriedade. Sentiram que não iriam para um lugar qualquer. Um renque de juçaras era sinal que estavam indo ao paraíso.
            Na roda de abertura, o mestre revelou a dimensão espiritual que o lugar tem a ele e sua família.  Talvez um resgate de um tempo pretérito. Uma fazenda onde a senzala reinou, lugar do berço de duas plantas sagradas para o candomblé, o lírio-do-brejo e lágrimas-de-nossa-senhora, em que suas sementinhas eram utilizadas na elaboração de colares para rituais e enfeites.
            A dimensão material é um lugar de encontro entre amigos. Lugar onde o convívio mais íntimo revela que pertencemos a uma mesma família. Ligação de hermanos. Seres afins que se encontraram para trilhar o caminho da agrofloresta neste plano, nesta dimensão chamada Terra. Iniciaram o passeio observando a paisagem na imensa diferença entre o Pico na Mantiqueira e o Fundo do Vale, onde estavam os participantes. Um lugar do reino das águas, onde o saber conviver com a dinâmica hídrica é fundamental. A localização da residência é em território longe da enxurrada. É minucioso e preciso. Aqueles tijolos antigos, daqueles que não encontramos mais, a argamassa com mais barro, o chão ”amarelão”, as janelas de demolição, as venezianas antigas de vidro, remeteu a sensação de estarem em um templo. Uma catedral do saber.

Imóvel rural construído com materiais reutilizados, sucata metálica; madeiras, tijolos, portas e janelas de demolição; pneus, pedras e garrafas.
            Caminhando pela extensão do lote, terreno da família, encontra-se o jardim de árvores já desenvolvidas, dois pés de gravitinga e alguns citros carregados com limões-cravo. Uma imensa moita de bambú. Parecem saudar a quem visita o local, dando as boas-vidas para adentrar na mata à dentro.

            Chegando à beira do rio, uma área da APP onde a dinâmica de força das águas revela todo o seu poder. Arrastam o que tiver pela frente nos tempos das águas.  Uma APP com árvores adultas e havia a presença de plantas formadoras de “pele”, o capim lágrima-de-nossa-senhora e o lírio do brejo. Funcionam como verdadeiros cílios a umedecer as pupilas das águas. Um riacho de águas límpidas e frias que vem da montanha, arrastando as pedras que estiveram pelo caminho. Na beira do rio está sendo introduzido o margaridão que devido ao seu desenvolvimento em touceiras consegue conter a força das águas.
            Atravessaram o rio e sentiram uma força e frieza. Adentraram na vegetação ceifada, onde há os lírios-do-brejo, que no passado eram utilizados como cama de negros, vinculavam-se ao sofrimento vivido naquelas terras e que agora tal vegetação cobre o solo, formando uma “cama” vegetal, que será cultivado na agrofloresta. Chegaram ao primeiro módulo de aprendizado desta etapa. Um SAF de bananas e árvores nativas, entre elas a juçara, nas linhas de diversidade. O mestre revelou que a maioria do que foi plantado serviu de comida para a natureza. Uma família de porcos selvagens fez ali sua moradia, deliciando-se do banquete oferecido. São raízes e caules suculentos que serviram a sua família. Vimos a “cama” lamacenta formada em seu ninho. Algumas bananas sobreviveram, assim como algumas nativas plantadas também.
            A linha central, formada de um canteiro de lírios ceifados, mostra o trabalho do mutirão anterior. Assim foi dada a tarefa do dia: capinar a linha de diversidade, fazendo sobreviver as poucas mudas remanescentes. São ramas de mandioca, ramas de batata doce, mudas de banana e poucas mudas de nativas; limpeza do terreno, retirando os lírios do brejo a facão no solo, arrancando os brotos com raiz.
A linha de diversidade é limpa para receber sementes de adubos verdes que entrarão no sistema. Salientamos a troca de informações entre os discípulos-mestres. É o momento de mutirão, em que, com a enxada na mão, conversaram entre pares trocando saberes e experiências na labuta do trabalho entre os agrofloresteiros.
Roçada do lirio para cobertura do solo. Plantio de mudas de frutíferas entre bananeiras.
Enquanto isto, o mestre foi abrindo fronteiras ceifando os lírios mata à dentro, aumentando seu território de ação sobre a natureza e, assim, planejando futuramente novos módulos de produção.
Foram plantados cambucás (Plinia edulis), grumixamas (Eugenia brasiliensis), bacupari (Garcinia gardneriana), juçara (Euterpe edulis), dentre outras espécies fornecidas pelo Viveiro Municipal de Pindamonhangaba.
No intervalo, o mestre nos explicou o princípio do Sol naquele território sagrado, beneficiando o desenvolvimento de mais plantas no local. Encontra-se no local alguns ninhos de jacú espalhando mudas de juçara em sua sombra. 
Mudas de palmeira juçara (Euterpe edulis Mart.) crescidas a partir de sementes dispersas pelo jacú (Penelope) abaixo da copa de uma quaresmeira (Tibouchina granulosa) utilizada como poleiro.
Os participantes deslumbraram a importância desta planta na cadeia trófica. Percebemos como é semeada a natureza. É o plantio pelo Mestre. Uma árvore adulta no centro, as juçaras como carro-chefe do sistema e ao redor da planta-mãe, a mão do homem fazendo criar natureza, assim serão organizados os novos SAFs, tais como mandalas. Entendemos a franja formada, o tal renque de juçaras que vimos ao adentrar neste paraíso.
            Hora de conversa, um dos discípulos-mestre Marcos Marsicano nos presenteia com a apresentação de princípios da agricultura biodinâmica, a agricultura que está interligada ao cosmo, em sintonia com o universo. Explana sobre os preparados biodinâmicos preparados e dispostos em “chifres” de bois, os cornos, é nos explicado o preparado do esterco bovino e o preparado à base de sílica, necessário para trazer o cosmos paa o sistema, que está muito ancorado nos elementos ‘terra-água’, veja bioindicadores ‘porcos’. Uma aula à sombra da árvore guia crindiúva. É nos revelado às forças da Natureza.
            É tempo de retornar para o almoço abençoado. A delicadeza do arroz com batata doce e o feijão temperado com coentro, ambas as misturas oriundas de assentamentos, nos presenteiam com a riqueza do sabor. A união é marcante neste momento sagrado: a refeição elaborada de forma colaborativa. Renovaram suas energias, alimentando suas almas, ao observarem o cume daquela montanha que parece alcançar o céu.
Almoço na lenha e na pedra.
            Pausa para o café, café de marca regional, mostrando-os que estavam no coração do Vale do Paraíba. É tempo de refletir os rumos que a Rede Agroflorestal do Vale do Paraíba irá seguir. Quais encaminhamentos tomar, quais as providências cada um vai assumir. Quais os próximos passos.
            Despediram-se com um abraço, pelo dia de aprendizado e compartilhamento de sonhos e ideias. Hora do repouso merecido, abaixo do céu estrelado, recordando o momento vivido. Subiram um degrau do saber, desta agricultura que respeita a Vida, que respeita a Deus. Fecho este relato, com a caneta da APTA nas mãos, neste primeiro dia de vivência, neste templo sagrado do Saber.   


Adaptação para blog - Antonio Calos P. Devide - Pesquisador da APTA

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