16 de jul. de 2019

A RETROTRANSIÇÃO À AGRICULTURA CONVENCIONAL NO PROJETO DE ASSENTAMENTO CONQUISTA EM TREMEMBÉ – SP


Relato por: Engº Agrº José Miguel Garrido Quevedo

ARTIGO SOBRE VIVÊNCIA NO ASSENTAMENTO CONQUISTA DE TREMEMBÉ no âmbito do Curso de Longa Duração em Agroecologia.
Figura 1. Reflexões sobre a necessidade do fortalecimento do Programas de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal para promover a segurança alimentar e nutricional da população e gerar renda no campo.

“Meus irmãos herdaram o gosto pelas verduras, mas o fino do carvão acabou no assentamento. A legislação orgânica no país proibiu o uso de extrato pirolenhoso devido ao alcatrão.”


“Me assustei pelo reumatismo pela friagem.”

”Prefiro me dedicar à roça, gosto mais de trabalhar na ida com as plantas do que com o barulho da cidade.”

A APAN, Associação de Produtores da Agricultura Natural, na década de 90, realizou trabalhos de formação aos agricultores do Projeto de Assentamento Conquista em Tremembé. Tais trabalhos tiveram como ícone o Sr. Fidélis. Produziam o extrato pirolenhoso, utilizavam o fino do carvão e a calda “líquido-abençoado”, para praticar a adubação líquida inoculadora de microrganismos originados de moitas de bambu do próprio assentamento, e aprenderam com a comercialização direta ao consumidor em feiras livres convencionais, onde a livre competição se dava pelo ganhar a dona-de-casa pela confiança, apresentando um produto vistoso a ela.
 Foram depoimentos que se revelaram nesta roda de saberes. O fato é que o período da comercialização direta exauriu-se. O governo popular proporcionou os contratos com instituições públicas, fornecendo os alimentos comprados e produzidos pelos agricultores às escolas e presídios, através do Programa de Aquisição a Alimentos - PAA (Fig. 1), cujo compromisso com entidades filantrópicas e assistência social à sociedade proporcionou uma renda mensal fixa, sem a necessidade de comércio fora da porteira.
            Paralelo a este comércio institucional, a verdura agroecológica é mais bonita e vistosa e atrai intermediários em busca de produtos que estas “moscas raras” fazem florescer. Porém, o fornecimento à base de contratos exige padronização e fornecimento contínuo dos produtos firmados em acordo de fornecimento, tanto as instituições como os intermediários distribuidores de produtos originados do labor familiar.
            Algumas adaptações foram necessárias no sistema produtivo agroecológico, estimulado pela agricultura familiar e pela APAN, na década de 90.
            No convívio da propriedade da Toninha, a produção de mudas para baratear o custo da produção e fornecer mudas de couve de qualidade foi fato fundamental para sua adaptação no sistema produtivo. A utilização de fertilizantes químicos restrita em épocas de amarelecimento das folhas, com a aplicação de sulfato-de-amônio, tornou-se necessário. O uso pontual de defensivos químicos para evitar que a doença da couve e pragas denegrisse seu produto também foi necessário para não quebrar o contrato. Apropriou-se a respeito do “período-de-carência” na aplicação dos defensivos agrícolas, cujos princípios ativos são neonicotinoides e inseticidas biológicos a base de Bacillus thuringiensis.
            O uso de plantio em módulos de mudas homogêneas, em contraponto com a diversidade sugerida no sistema agroflorestal, garante o raciocínio mental de saber que aquela área produzirá quantidades de roças de couve que atenderão o compromisso daquele sistema.
            Apesar de ser um lote que realizou a retrotransição à agricultura convencional, todas as técnicas são consideradas como saber, trata-se do empoderamento do saber técnico apropriado por parte desses sábios mestres do conhecimento em lidar com a terra e com o mercado.
            Já no lote do Seu Antônio (Fig. 2), aquela pessoa simples, do falar baixinho, magrinho, musculatura firme e fala mansa. Lembrou-me o fenótipo do meu pai. Em seu lote, o que chama atenção é o “Plantio de gente”, cinco familiares residem ali, filhos, filhas, genros, nora e agora os netos, dos quais desfrutam do território reformado e que não tiram o sustento pela labuta na terra. Jovens que perderam o gosto pela dureza do cabo da enxada, seguiram o caminho do estudo na cidade para se formar em profissões menos desgastantes. Precisam estes perto do avô para habitar na Reforma Agrária, que lhes dá moradia de graça, conta-de-luz mais barata, a água, que vem do poço cacimba de graça, e ainda proporciona o contato com a natureza, o acordar com o cocoricó das galinhas e o canto dos galos as cinco da matina para trabalhar na cidade.
Figura 2. Seo Antônio cria muitos familiares na lavoura de mandioca e banana, em Tremembé - SP.
            Há de se aceitar que a proximidade do PA Conquista com a cidade de Tremembé proporciona este objetivo prestado pela Reforma Agrária a alguns assentados naquele território, simplesmente como um lugar para morar. O assentamento é uma comunidade e, assim como toda comunidade, há pessoas com diferentes funções e necessidades.
            No lote da Janaina (Fig. 3), me prostei com aquela casa na árvore de bonecas (Fig. 4) e que o nome de uma das suas filhas me fez recordar de tempos que outrora assistia o filme A Pequena Sereia Ariel, pelo menos 400 vezes, junto com minhas filhas. 

Figura 3. Dona Janaína agricultora assentada da reforma agrária em Tremembé, entre Verônica (UNESP) e Magali (INCRA).
Figura 4. Casa na árvore mistura realidade e sonhos de uma nova geração, com muito mais oportunidade para o campo como novas empreendedoras de geleias agrofloresteiras do Assentamento Conquista de Tremembé - SP.

          Uma mãe empreendedora, nascida em acampamento, perdeu sua mãe logo após nascer, no parto, talvez em função do desgaste que a luta pela terra trás as mulheres que lutam pelos seus sonhos, por si só a torna uma vencedora. Sobreviveu, cresceu e foi tentar a vida em outro estado. Encontrou seu companheiro e agora sonha o sonho que não conseguiu esquecer, a agrofloresta. Chora ao assistir os vídeos no YouTube daquele mestre suíço, pai da agrofloresta no Brasil. 
            Em seu pequeno território herdado pelo trabalho do pai viúvo, empreende aprendendo a fazer gostosuras. Especializou-se em geléias agroflorestais. A cada receita descoberta ou redescoberta sonha com a possibilidade de tacar-lhes o código de barras e ter o fruto de seu trabalho oferecido em um empório distribuidor. Produto artesanal e só pensa na alquimia dos sabores. No pequeno trecho que cuida e aplica tudo que aprendeu. Faz cobertura com capim roçado nos canteiros de sua horta. Fato inédito em todo assentamento que há monoculturas de alface. Sonha herdar em suas filhas a mesma paixão pela agricultura agroecológica.
Figura 5. Cajá-manga (Spondias dulcis, família Anacardiacea), dá saborosa receita... geleias, doces, sucos e a fruta de comer ao pé da árvore.
            Foram retratadas três realidades, três perspectivas e três possibilidades que o “guarda-chuva” da agroecologia proporcionou àquelas famílias.
            No início da noite, nos reunimos no lote da Deise Alves. Lá, o cajá-manga (Fig. 5) e o araçá-boi (Fig. 6) já deram muita história prá contar nesse Curso de Longa Duração sobre Agroecologia. tem muita história prá contar. No conforto da sala-cozinha, onde tudo gira em torno do alimento, ao redor daquela bancada de tijolos e azulejos de piso que se transformaram na grande mesa do compartilhar o saber, em poltronas “retrô”, trocamos idéias do que aprendi com aqueles agricultores e pudemos discutir a elaboração de uma proposta caseira para repelir as lagartas da couve da dona Toninha, a base de coentro, manjericão e citronela, com punhado de folhas frescas, são deixadas marinar em água pura e no outro dia pela manhã são batidos no liquidificador, coados e pulverizados pela pulverização costal, sem diluição ou qualquer fervura. Acrescidos de 1,5 ml de própolis verde, promete fazer muito bem para saúde.
Figura 6. Araçá boi (Eugenia stipitata, família Myrtaceae), mais uma das frutas nativas em produção... carrega de forrar o chão... com possibilidade de aproveitamentos diversos... sucos, geleias e fruta de comer no pé.
            Aprendi com Seu Antônio a plantar mudas de banana-chifrão, bem desenvolvidas, fendas no chão, no berço que acumula água, formando uma bacia de acúmulo. Levo para casa o maior cacho de banana que ganhei de brinde. Quase do tamanho do banco traseiro do Gol.
            E na Janaína e a dona Toninha, incentivamos a necessidade daquele território bioenergético que é o lote familiar, ter território demarcado para a mulher ser feliz e mandar. Há o sistema agroflorestal com frutíferas diferenciadas como o cambará cresceu pelas beiradas da produção do marido, fazendo o papel de “zíperes” daquela unidade familiar (Fig. 7).
Figura 7. Desenho de módulo florestal a ser enriquecido em mutirão durante o Curso de Longa duração.
            E de lá sai os produtos das geléias que saboreei no café da tarde, regados por chá de Moringa oleifera que aprendi que tem como utilidade reduzir cólicas menstruais e dores nas articulações. Ganhei um saquinho dessa planta da vida, para conviver com minha diabetes.
            Enfim, podemos presenciar com estes agricultores familiares de Reforma Agrária como “pinçam” conhecimentos agroecológicos e apropriando-se, empoderando-se e tornando-os seus saberes.

Instrutor: Engº Agrº José Miguel Garrido Quevedo - INCRA  
Transcrição: Verônica Andressa de Castro – acadêmica curso de Engenharia agronômica na Universidade Estadual Paulista (Botucatu)
Adaptação para o blog: Antonio Devide - APTA
Imagens: Anna Cláudia Leite, Verônica de Castro e participantes do Curso.








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